terça-feira, 5 de abril de 2011

UMA CAUSA SUSPEITA

Europeus e americanos intrometeram-se no conflito líbio sem saber quem, de fato, estão ajudando, num misto de ingenuidade política e ganância econômica. A Al Qaeda agradece

O conflito na Líbia estende-se há mais de sete semanas, duas delas com bombardeios comandados por Estados Unidos, França e Inglaterra. Na quinta-feira passada, a operação militar passou a ser dirigida pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Duas questões cruciais, no entanto, ainda estão sem resposta: quem são os rebeldes líbios e por que as forças ocidentais querem ajudá-las? Oficialmente, a Organização das Nações Unidas autorizou a intervenção externa com o intuito de impedir que o ditador Muamar Kadafi, encastelado na capital, Trípoli, no oeste do país, massacrasse os civis que se levantaram contra seu governo. Na prática, o que a Otan está fazendo é dar suporte aéreo para que os rebeldes avancem por terra rumo a Trípoli e derrubem Kadafi. Os resultados têm sido pífios: até sexta-feira passada, os combates entre rebeldes e kadafistas continuavam sem vitoriosos. A cidade de Ras Lanuf, por exemplo, mudou de mãos quatro vezes desde o início da guerra civil. Ou seja, tudo indica que americanos e europeus se meteram em uma encrenca sem perspectiva de solução rápida. Na falta de melhor opção, a coalizão ocidental começou a discutir a possibilidade de fornecer armas aos rebeldes, apesar de, como reconheceu a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, não se saber exatamente como eles pensam e que tipo de regime implantariam no lugar do atual.

Dar armas a desconhecidos parece algo bastante perigoso, a não ser, é claro, que os ganhos possíveis compensem os riscos. O que o Ocidente tem a ganhar com a vitória dos rebeldes líbios? Do ponto de vista político, os Estados Unidos e seus aliados europeus vislumbram dois benefícios. O primeiro é demonstrar aos árabes que estão ao seu lado na luta contra tiranos, uma maneira de compensar décadas de apoio a regimes ditatoriais. O segundo, evitar o peso de, posteriormente, serem cobrados por ter assistido inertes a um genocídio, como ocorreu em Ruanda, em 1994. Esses dois benefícios políticos da intervenção, contudo, só fazem sentido se for correta a premissa de que o levante líbio é movido por sentimentos democráticos. A tese “árabes pela democracia” também foi aplicada aos protestos que derrubaram os governos da Tunísia e do Egito, nos últimos meses, e ameaçam os do Iêmen, do Barein e da Síria. Ela, contudo, tem se provado excessivamente otimista.

Além dos supostos benefícios políticos das operações militares do Ocidente na Líbia, há interesses econômicos em jogo, bem mais concretos e esclarecedores. A Líbia participa da Parceria Euro-Mediterrânica, uma associação comercial, cultural e de segurança entre os integrantes da União Europeia e os demais países do Mediterrâneo. Em 2009, o comércio entre a União Europeia e a Líbia foi de mais de 37 bilhões de dólares, sendo a Itália, a Alemanha, a Espanha e a França os maiores parceiros do país do norte da África. A Itália, que ocupou a Líbia durante três décadas, tem uma posição privilegiada nessas relações comerciais. Kadafi e o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi consideravam-se bons aliados. Um quarto do petróleo utilizado na Itália vem da Líbia. A empresa petrolífera italiana ENI é a maior investidora no país e, antes de a guerra estourar, extraía lá cinco vezes mais petróleo do que a Total, sua concorrente francesa.



Os italianos também levam vantagem em outros setores, como os de construção civil, transporte e financeiro. Entre os negócios mais rentáveis com Kadafi estava o comércio de armas. Desde 2004, os maiores países da União Europeia venderam 1,1 bilhão de euros em armamentos ao ditador, agora utilizados para combater os rebeldes que os europeus tanto defendem.

A rapidez com que o governo francês reconheceu o Conselho Provisório Líbio como verdadeiro representante político do país, há três semanas, levantou a suspeita entre os italianos de que o presidente Nicolas Sarkozy pretende garantir uma fatia maior nos negócios com a Líbia pós-Kadafi. Na semana passada, os maiores entusiastas da ideia de entregar armas aos rebeldes líbios eram, justamente, os franceses. Na sexta-feira, o ministro das Relações Exteriores da França, Alain Juppé, fez a ressalva de que a tal campanha de armamento teria de ser aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. “Se tudo se resumisse a armar os rebeldes, já seria um problema. Mas é inútil entregar fuzis e peças de artilharia a eles sem dar também treinamento, o que exigiria o envio de militares ocidentais para o foco do conflito”, diz o cientista político americano Charles Kupchan, do Conselho de Relações Exteriores, em Washington.

Escandalizar-se com o fato de os europeus quererem defender seus interesses comerciais na Líbia talvez seja uma ingenuidade, mas não tanto quanto dar armas a um grupo heterogêneo (de combatentes cuja visão de mundo e projeto político são ignorados. O governo americano enviou espiões da CIA à Líbia para descobrir quem são, afinal de contas, os rebeldes líbios. Em depoimento ao Senado, o almirante James Stavridis, comandante militar da Otan, deu uma pista: segundo ele, há informações de que membros da rede terrorista Al Qaeda e do grupo libanês Hezbollah estão participando do levante. Outras organizações radicais muito populares entre os habitantes do leste do país, onde se iniciou o movimento anti-Kadafi, são o Grupo Islâmico de Combate Líbio, cujos integrantes lutaram contra os Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, e a Irmandade Muçulmana, com raiz no Egito. No início de março, a reportagem de VEJA visitou um hospital da Irmandade Muçulmana, no Cairo, e encontrou oito rebeldes líbios recebendo atendimento gratuito para cuidar de ferimentos de combate. Em fevereiro, Yusuf al Qaradawi, guia espiritual da Irmandade Muçulmana, decretou uma fatwa obrigando qualquer soldado líbio a matar Kadafi, se surgir a oportunidade - um indício de que o grupo islâmico espera obter dividendos políticos com a queda do ditador. A Al Qaeda é mais explícita. Na semana passada, o clérigo americano Anwar al Awlaki, integrante do grupo terrorista no Iêmen, divulgou um artigo na internet em que comemorava o fato de os governos do Ocidente não estarem dando a devida atenção à intensa participação de jihadistas nas manifestações que incendeiam o Oriente Médio desde o início do ano. Awlaki deixou claro que os defensores da criação de estados islâmicos só têm a ganhar com o fato de que, na atual fase dos protestos, haja muçulmanos com ideias seculares que conseguem convencer o Ocidente do caráter democrático dos levantes árabes. A Otan, portanto, está dando apoio militar na Líbia a inimigos do Ocidente. Falta descobrir se eles compõem 5%, 50% ou 99% das fileiras rebeldes.

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